Aí ... mas de que serve imaginar
Regiões onde o sonho é verdadeiro
Ou terras para o ser atormentar ?
É elevar demais a aspiração,
E, falhado esse sonho derradeiro,
Encontrar mais vazio o coração.
Fernando Pessoa, in Soneto XXXIV
Ninguém é ninguém?
História: “Amor e perdão”
Procurando
encontra-se sempre mais alguém...
Sou
aquela brisa ligeira que te toca a face.
Sou aquela gota transparente do Teu Tudo.
Neste instante pulsa-me o coração
Em sintonia com tantos outros
Ao mesmo ritmo e com o mesmo bater,
O tom? É o mesmo.
Mas este aqui é o de um bater mais lento.
Vem-me agora mais sentido,
Mais batido.
Oiço-te sim...
Ai se soubesses apreciar estes momentos
Em correntes de Água Viva,
O quanto o mundo dos teus mundos
Passaria de efémero a duradouro.
E porque é eterna esta verdade
Adormeço na margem deste rio,
Embalada pela água
Que canta e me leva na corrente.
Oh mente, caminha, navega, vai, sente.
Atravessa para a outra margem.
Leva contigo o teu destino
Os
estados de alma e o viver com o objectivo de partilhar levam-nos sempre mais
longe no caminho que nos é traçado ou que traçamos e tantas vezes alcançamos
metas que nem sonhamos sequer o que se recebe pelo caminho.
Solange agarra-se á vida como se esta
não devesse cessar um dia, ou talvez seja, quem sabe, algo ou alguém que a
retém por cá...
Tenta com muito esforço, ultrapassar a ponte do amor-próprio e do
perdão.
Algo por trás do cortinado
daqueles olhos revela o sofrimento da sua alma e as areias movem-se naquela
praia deserta para formarem novos castelos.
A família acha pesado demais este
tempo de espera em que se esgotam as energias e o tempo se torna longo demais.
Todos no fundo sabemos que estes momentos são momentos propícios a mudança e
não á permanência, por isso se tenta dar tudo o que se possui e o que não se tem
mas que nos vem sempre por acréscimo.
Sabem que a vida não é um negócio
mas sim um estado de alma intrínseco e definido com um objectivo final, atingir
caminhos diversos, onde há encruzilhadas, rotundas, esconderijos, rios e
regatos, mares e lagos desconhecidos que por vezes nos impedem de fazer viagem.
Sento-me ao lado de Solange em
silêncio e na cadeira ao lado está Geneviéve a irmã que a tem vindo a
acompanhar nesta última caminhada.
Está a pegar-lhe na mão, um pegar
já meio despegado apenas um toque de dedos que falam...:” vai para a essência de quem és pois estás entre dois pólos...”
Mas nada existe separado de nós,
isso sabemos...e projectos de vida em cuidados paliativos fazem-se até ao
último instante, as perguntas que a enfermeira Utilia faz a Solange são as
seguintes... (:Um segundo de vida é precioso e pode ser um remédio).
-“Tem algum projecto pendente? Ou algo que queira fazer e não fez? Alguém
que queira ver e não viu? Quer reconciliar-se com alguém?”
Por momentos ouve-se o grande silêncio
do relógio eterno sanando aquele quarto, indo de um muro ao outro tocando os
preconceitos e as dúvidas de cada um de nós.
Um silêncio ensurdecedor que fala
todas as língua e em todas as mentes presentes e sei lá, noutras que até nem
estão no quarto... O trabalho que se faz com estes pacientes é um trabalho de
equipa, mas acontece que tantas vezes eles escolhem quem eles entendem, ou
talvez quem mais se proporcione para acolher certas confidências. E vejam como
é que as coisas nos podem ser desvendadas.
Passar o Último Estreito
As minhas certezas tão certas
Rompem-se em pedaços
Na imensidão das ondas batidas nas rochas.
Estripando léguas de areia
Na luz transparente dos meus olhos.
Nada muda aquele rumo...
É vital
Fita-se o mar daquele barco imenso.
Nem os ventos, nem os ares
Tão pouco os pensares, param aquele navegar
E morrer é passar o último Estreito
Sussurra-me o silêncio
Não Me Forces
E quando estiver calada
E não mais quiser falar
Não me forces...
Houve o sopro silencioso da minha alma
Transportando o tempo da saudade ao infinito
Iluminando as estrelas e visitando a noite
Levando no regaço a Lua de tantos sonhos.
Ouve e tenta compreender
Serei sempre apenas e só
Aquela sombra diante do teu sol
Ser-te-ei eternamente grata.
Voltando á história de Solange,
A Utilia fala-lhe do filho que faleceu, da sua
mãe e do seu pai. Fala do desapego a certas coisas que pesam nas bagagens da
partida, de amor e de perdão e depois volta às suas tarefas usuais e distribui
a medicação do meio-dia, vai pensando nisto e naquilo...coisas da vida e coisas
da morte, tem a certeza que, o esclarecimento começa por aceitar sem julgar o
que quer que seja...vem-lhe um pensamento de entrega. “Que Deus me acompanhe nesta união de oração, preciso de ajuda...”
Aparentemente está tudo em ordem
mas eis que a irmã tem a última palavra e diz-lhe:
“Tu
tiveste a ocasião de te reconciliar com ela, mas será que terás uma outra
oportunidade? “
Aproveitar as ocasiões? É o que necessito de fazer?
Utilia, a enfermeira percebe que ser feliz é não ter medo
dos próprios sentimentos, é seguir o seu fado, semear, plantar e sempre fazer
crescer o viver, cedendo vida no que ela tem de melhor.
O que me limita ou o que quero dar e penso não ter?
Magiquei que como enfermeira, tenho mesmo de aproveitar a ocasião nem
sei para quê.
Posto isto Geneviéve contínua a
conversa dizendo que vai jantar com a Myléne.
“Lindo nome, digo eu, conheço alguém que tem esse nome e de quem gosto
imenso, depois deste gosto imenso, de repente os olhos de Solange abrem-se e
parece-me que se espraiam lá dentro cristais luzidios e transparentes...é uma
lágrima a querer fugir dum cofre fechado certamente...”
Nada é...
A minha ignorância precavida, encara a sabedoria traiçoeira...
Mais sábio que o sábio é quem tem a dúvida. “Nada sei “
O ignorante? Esse cinge as rédeas e segue com seu burrico.
E na solidão coloca o silêncio das barricadas do destino.
Estou contigo.
Diz a voz do silêncio
“A liberdade cria-se para melhor se
encontrar...”
E a conversa continua á cerca de Myléne.
A Solange não fala, apenas
comunica por gestos, está no limite das suas forças.
Mais tarde a irmã vem ter comigo
e diz-me que Solange está de relações cortadas com a nora desde que o filho
morreu, ela acha que a nora terá sido a causadora da morte dele.
Fiquei-me a pensar em todo este
drama e soltei um suspiro, falei com os meus botões mais uma vez, um monólogo
em que por vezes os muros têm ouvidos e boca para falar a sós...”quando pensares que tens uma vida eterna
ficarás a saber que a morte é apenas uma ilusão que te persegue e nada mais.”
De tarde falou-se novamente de
perdão e de reconciliação
E como que uma verdade vinda sei
lá da boca de quem segredada ao seu ouvido, a enfermeira tem a certeza daquilo
que ainda não aconteceu.
Pede a Solange que autorize que
Myléne venha vê-la e se não conseguir ou não quiser perdoar-lhe, pelo menos a
deixe pedir-lhe perdão
A comunicação com Solange como já foi
mencionado atrás é deveras limitada e neste caso entre um sim e um não há um
abrir ou fechar de lhos que se torna resposta, o código é: se ela autorizasse a
visita de Myléne, fecharia os olhos.
Os olhos não se mexeram durante uns 10 minutos, apenas fixavam os meus.
Ao perscrutar aqueles olhos
indecisos em forma de se...que ficou preso ás pálpebras, o tumulto da sua
incerteza puxou-me emocionalmente a ultrapassar
barreiras e derrubar muros para construir uma ponte.
Acabei por compreender que o ser humano é limitado mas ao mesmo tempo tem
os seus mecanismos de defesa. O que eu pensava ser apenas um abrir ou fechar de
olhos era um tumulto da alma.
Por fim, Solange fechou os olhos e
deste modo ficámos a saber que havia um sim e uma porta aberta para Mylène.
Solange estava de acordo para
receber a nora.
Myléne veio vê-la permaneceu no
quarto mais de uma hora e o que se passou entre aqueles quatro muros pertence
aos segredos dos Deuses.
Apenas ouvi a Myléne fechar a
porta do quarto e dizer até amanhã.
Depois deste episódio, Solange
que era católica pediu a visita do capelão do Centro de Cuidados Paliativos .
Passou o resto da tarde com ele.
“Quando cheguei para distribuir a medicação da noite, pairava naquele
quarto, uma tal paz... os olhos de Solange brilhavam como duas estrelas e os
seus lábios esboçavam um sorriso fixo no ponto de encontro da sua vitória.
Tinha um rosto sereno, como que se por ali tivesse passado um anjo de
luz que por certo acendeu o brilho em todos os recantos da sua alma.
Eu como enfermeira senti-me em paz, parece-me que a paz se transmite de
pessoa a outra como o liquido em vasos comunicantes?
Há coisas que me levam sempre mais longe em cada acompanhamento que
faço e ao estender-te a minha mão, sinto que vamos juntas ao local em que a
barca da saída nos espera, iremos encontrar as águas verdes da Esperança que
tanto falámos...
A irmã que chegou para a visita
da noite quis festejar esta dita reconciliação, chegou com uma garrafa de champanhe
debaixo do braço e convidou a equipa para festejar esta ultima vitória em que
as cordas subiam a eternidade, pediu-me copos, mas havia um problema, Solange
apenas era alimentada pela Sonda Naso- Gástrica..
Sussurra o silêncio
“Não me vou curvar á tempestade, não, espera um pouco, quero festejar
esta brisa que se aproxima este ar frio que me toca a face, já pouco me importa
os dias passados nem os futuros que não vão nascer, apenas quero beber
champanhe. “
E o silêncio impõe-se
Numa sementeira, desenfreada
Ao sabor da inumanidade
Levo pela tempestade
Da vida as minhas quimeras
Que caiem na terra húmida,
Restos do que fui.
Ela queria beber a sua parte em
presença dos médicos e toda a equipa...não foi difícil, o copo dela foi cheio
como o de todos os presentes.
A seringa de 60 cc foi esvaziando neste caso o copo de Solange até á ultima gota.
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