LEMBRANÇA

Aí ... mas de que serve imaginar Regiões onde o sonho é verdadeiro Ou terras para o ser atormentar ? É elevar demais a aspiração, E, falhado esse sonho derradeiro, Encontrar mais vazio o coração. Fernando Pessoa, in Soneto XXXIV

AO RELER O QUE ESCREVI SITUO-ME PERFEITAMENTE.
Mas para vós penso que  será muito complicado compreender o que alguém vive pois as vivenciais, os sentimentos a gestão da dor,  também das alegrias e a partilha não é fácil.
Cada uma das minhas colegas enfermeiras que passaram por lá  saberão falar e até compreender.

 História: “Respeitar a identidade espiritual do ser”

Quando ainda conseguia falar Dominique pediu-me que nos últimos instantes não a deixasse só...a roupa que levaria para sua última viagem, estava ali dependurada no armário, era aquele fato lindo que usou num momento muito especial da sua vida, queria ir bela ao encontro dos pais que estavam á espera dela, este era o seu último projecto de vida.

-

Sim estarei consigo nos últimos instantes, era o que eu dizia, sempre sorrindo.

Por vezes não conseguia cumprir mas havia sempre uma colega que estava presente ao pedido.

Gesto simples que podem modificar a vida de alguém e sobretudo se está triste.

E é assim que tantas vezes contagiamos os nossos pacientes distribuindo doses de sorrisos...

 A hora chegou e Dominique estava a preparar-se para partir, eu estava tão ocupada, estavam uns três pacientes para partir ao mesmo tempo.

Havia muito trabalho, imenso e o acompanhamento neste dia estava muito difícil porque havia tarefas urgentes para fazer. Mas Dominique não tinha família e tinha pedido para eu estar com ela nesse momento.

Entre um abrir e fechar de portas

Bom dia Dominique.

Bom Utilia.

 È com um sorriso rasgado nos lábios que vejo aquele outro esboço de sorriso a apagar-se naquele rosto

A hora chegou e eu vou morrer, diz-me Dominique.

-Vai morrer?

-Sim, vou...

-Está preparada?

-Precisa da minha ajuda?

.- Preciso.

-Tem medo da morte?

Não

Sussurra-me o silêncio

Tudo o que sei é que estarei consigo até ao fim e não a deixarei só, (outras colegas ocupavam-se de outros cuidados, trabalhávamos sempre em equipa.)

Sento-me ao seu lado pego-lhe na mão e depois dum grande silêncio em que se falava de alma a alma e de coração a coração, eu pergunto-lhe se quer que ore por ela.

A resposta foi:

- Para mim isso não é importante.

Pensei comigo mesma mas o que será importante?

A resposta veio logo á minha mente.

-O importante é respeitares a sua vontade, e assim aconteceu.

Dá-me autorização para que ore por si, pergunto eu?

Penso que naquele momento eu precisava de orar não por ela mas por mim.

Ela responde-me, se isso lhe faz prazer.

...

Foi então que o meu pensamento se voltou numa prece para Deus, o Deus no qual acredito o Criador de todas as coisas.

Senhor como vai fazer? Eu não percebo nada disto, pensava eu.

Dominique não acredita em Deus mas crê na Bondade e na Beleza, num Principio e num Fim.

Vendo o que nos aproxima, também eu acredito “ na Bondade e na Beleza, num Principio e num Fim.”

Ao vê-la tão calma tão tranquila e confiante eu vejo a Beleza nesta partilha tão única.

Também eu acredito na beleza.

E, em silêncio percorro páginas que escrevi outrora... um mar de pensares enfiados em folhas amarfanhadas numa garrafa de vidro verde à qual acabo de quebrar o gargalo.

 Quando os números já não são matemática.

Nem as flores palavras.

Nem a alma conhece o destino

Nem o pensamento opina?

É a Vida, eu sei.

E as folhas do Outono que teimam em cair…

Caiem como meteoros desfragmentados,

Contra as paredes do destino.

Retornando ao solo que as absorve.

É a Vida, eu sei

E as folhas do Outono que teimam em espalhar-se…

Resta-nos sim, algo…”Aquela Força”. Que as move.

Ver aquelas árvores abanando os restos dum Verão Escaldante

Sobre a Terra que as ampara, não deixa de ter o seu sentido.

É a Vida, eu sei

E as folhas do Outono que teimam em encontrar-se…

Frágeis… sofrendo dignamente os abanões do Outono.

E aquelas pérolas de seiva que correm dentro das recordações,

Aonde passaram?

Folhas de tantas cores, nenhumas se parecem com a cor da saudade

Cansadas de estar no topo da árvore caiem por terra.

E ilesos para verem as folhas caírem,

E sentirem a luz terna do sol, baixando no horizonte,

Resta-nos sim, algo …”Aquela Força”.

E as folhas do Outono deixam um segredo: as Primaveras voltarão com outros rebentos:

E foram tantos os Outonos já passados

Aquele estado da vida antes de chegarem outras Primaveras…

Catrapus...

-Lembra-se dos seus pais?

Neste momento lembro-me muito deles, sim.

Os meus pais eram toda a minha vida sempre vivi com eles e para eles.

Vamos pedir-lhes que venham ajudar-nos?

“D’accord ma cocotte”

Os meus pais? Ainda agora aqui estiveram.

Estão lindos e jovens como quando eu tinha 18 anos.

Estão aqui no quarto neste momento?

-Não.

-Vejo uma luz á porta.

...

Mostra-me algo de belo lindo que me satisfaça a alma, pede-me Dominique

Entre duas respirações profundas e lentas uma viagem pelo Egipto. É isso mesmo a Beleza em que acredita, e ali está um livro colocado sobre a mesinha de cabeceira como se uma mão o tivesse aberto para este momento e mesmo nesta página um lindo pôr-do-sol sobre o Cairo.

“O Sol nasceu, e neste momento está a deitar-se para adormecer no crepúsculo duma nova manhã.”

Dominique aprecia a beleza... Bela paisagem

São lindas as pirâmides, eu fui visitá-las com os meus pais, lembro-me como se fosse aqui neste momento.

.

Vejo novamente aquela luz branca que entra pelo meu quarto e que neste momento está ao teu lado Utilia.

- Não vejo nada, mas talvez haja coisas que a Dominique é capaz de ver e que eu não consiga.

Quando voltar a ver a luz siga-a.

Uma hora depois Dominique, partiu para a ultima viagem levou vestida a roupa que  tinha escolhido foi ao encontra do Fim.....Penso que encontrou o PRINCIPIO

Que encontres sempre no teu caminho A Bondade, a Beleza e que No Principio para que nasceste encontres agora o Fim que te leva até ELE

E que, com as duas pontas consigas fazer um laço de Amor no presente que foi e será a tua vida...

Por Um Ideal De Amor

Caminhei

Abracei sonhos e ilusões

Recolhi sentimentos

Mais extensos que paixões

Desatei corações iludidos

Curei outros mais sofridos.

Senti o meu peito bater

Difícil foi a emoção conter.

Abracei sempre rosas e espinhos

Urzes, silvas e estilhaços.

Nas grandes tempestades da vida

Tantas vezes fiquei comovida.

E por mais que tenha reflectido

Retirei sempre a conclusão:

O Amar é muito mais

Que a lógica e a razão...

Este acompanhamento é uma revelação para mim sou católica, tenho princípios, uma educação religiosa...Muito importante...a oração e a meditação eram recursos espirituais que procurava com frequência. Mas neste momento...

Deste livro tão grande que é a nossa vida, temos direito a reescrevê-la, mas nunca a apagá-la.. Como esta frase me soa verdadeira

E também compreendo que nunca apagamos nenhuma página, mesmo aquelas que estão riscadas ou têm borrões.”Porque depois do epicentro da dor voltamos a lê-las embora com lágrimas por ser saudosa”

As escritas com o coração levam e trazem saudade, mas também nos alegram.

Deixam também o silêncio, o verdadeiro e aquele que fala e não mente.

Outros pediam para continuar:” Continua, eu peço a Deus que te ajude a continuar. Saudades “

E a coragem aumentava sempre porque o que se recebe  é sempre muito mais que o que se dá.